Descoberta fóssil de 437 milhões de anos é o registro mais antigo de uma sanguessuga. Pesquisadores concluem que ela engolia vertebrados inteiros ou sugava seus fluidos corporais
Você já deve ter ouvido falar que quando uma pessoa é “mordida” por uma sanguessuga, ela pode sangrar por até 24 horas seguidas. Essas criaturas que remontam à medicina medieval para terapias, como a sangria, na verdade ainda são utilizadas em condições médicas controladas, como transplantes, enxertos e no tratamento da trombocitopenia induzida por heparina – uma complicação grave do sistema imunológico que leva a um estado de hipercoagulação. Isso porque a hirudina medicinal – um polipeptídeo derivado de sanguessugas – é um potente anticoagulante.
“Elas têm aparatos bucais especializados, e isso fica interno. Algumas sanguessugas têm uma probóscide [uma espécie de sugador], e aí é como se fosse uma picada de mosquito. Mas algumas também têm uma mandíbula com uns ‘dentinhos’, [com] que elas vão serrilhando. Daí, o hospedeiro fica com uma marca que é mais ou menos assim”, explica Rafael Eiji Iwama, mostrando uma tatuagem no braço em formato de “Y”. Pesquisador do Instituto de Biociências (IB) da USP, Iwama é um dos poucos especialistas em sanguessugas do Brasil.
Embora esteja mais habituado às sanguessugas viventes ou atuais, o pesquisador da USP teve a oportunidade de estudar e descrever o que parece ser o primeiro registro fóssil do corpo de uma sanguessuga, que data de 437 milhões de anos. A descoberta nomeada de Macromyzon siluricus aponta que a origem das sanguessugas é pelo menos 200 milhões de anos mais antiga do que se pensava. O trabalho foi publicado na revista PeerJ, no último 1º de outubro.
Esse fóssil também sugere que as primeiras sanguessugas viveram no oceano, e não necessariamente era “sangue” o que elas sugavam. “Antes da descrição do Macromyzon, muitos pesquisadores acreditavam que as primeiras sanguessugas teriam vivido em habitats de água doce e se alimentado do sangue de vertebrados”, afirma Danielle de Carle ao Jornal da USP. Primeira autora do artigo, Danielle é professora assistente do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade de Toronto, no Canadá.
“Não acreditamos que o Macromyzon se alimentasse de sangue de vertebrados. Primeiro, os vertebrados eram muito raros naquela época da história da Terra. Segundo – e mais importante – não há vertebrados conhecidos na biota de Waukesha”, diz a pesquisadora sobre o local onde o fóssil foi encontrado, em Wisconsin, nos Estados Unidos. Também chamado de Lagerstätte da Formação Brandon Bridge, o sítio é famoso pela boa preservação fóssil e abundância de fósseis de artrópodes como trilobitas – criaturas marinhas já extintas.
“Em vez disso, acreditamos que ela se alimentava de outros invertebrados, engolindo-os inteiros ou alimentando-se de seus fluidos corporais”, argumenta Danielle.
Danielle de Carle e Rafael Eiji Iwama são especialistas na biologia de sanguessugas e atuaram juntos como pesquisadores na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos – Foto: Sebastian Kvist/Cedida pelos pesquisadores
Um espécime "lindo e raro"
Se os cientistas sabem dessas informações, é graças ao estudo da anatomia e o conhecimento da árvore filogenética dos anelídeos – com suas relações evolutivas e de parentesco. Dentre esses animais invertebrados de corpo mole, ainda há muitas incertezas sobre a origem dos clitelados, o principal grupo de anelídeos composto de minhocas, oligoquetas e sanguessugas.
O achado fóssil adicionou mais um tronco na árvore da vida complexa, revelando a relação de “irmandade” de Macromyzon siluricus com as sanguessugas atuais. A identidade foi confirmada quando os pesquisadores detectaram um número fixo de segmentos subdivididos em anéis, além de uma grande ventosa na cauda, geralmente utilizada para que o animal se fixe no hospedeiro.
“Nesse grupo, temos a ordem Hirudinea, que nós chamamos de sanguessugas ‘verdadeiras’ porque elas têm duas ventosas bem definidas, características bem marcantes como vemos em filmes e desenhos”, aponta Iwama. “Mas a gente não conseguiu encontrar uma ventosa anterior na região da cabeça. E isso a aproxima filogeneticamente da Acanthobdellida, um grupo de sanguessugas que parasitam ou são comensais em peixes que migram do ambiente marinho para o de água doce. O salmão é um clássico.”
Para Karma Nanglu, paleontólogo da Universidade da Califórnia e coautor do estudo, o espécime encontrado é lindo e raro, uma vez que fósseis de animais compostos quase inteiramente por tecidos moles são extremamente difíceis de se encontrar. “A preservação desses animais geralmente requer as mais excepcionais condições ambientais. Isso geralmente inclui o sepultamento relativamente rápido do animal, o que inibe a decomposição bacteriana, estabiliza o corpo e reduz o acesso de necrófagos que possam consumi-lo”, afirma ao Jornal da USP.
O professor também destaca a idade da formação geológica de Waukesha, que preservou o fóssil com riqueza de detalhes. “A única conclusão que podemos tirar é que esse grupo surgiu na história da Terra muito antes do que supúnhamos”, aponta Nanglu.
A sanguessuga fóssil comparada com uma sanguessuga moderna. Setas duplas indicam a grande ventosa caudal usada para fixação, setas simples indicam os metâmeros (anéis externos) do corpo – Imagem: Andrew J. Wendruff/Universidade Otterbein e Takafumi Nakano/Universidade de Kyoto
Embora Macromyzon siluricus seja o único fóssil conhecido de um corpo de sanguessuga, existem outros vestígios de Hirudinea no registro fóssil. “Sanguessugas, minhocas e outros clitelados produzem casulos endurecidos para proteger seus ovos. Esses casulos são bastante comuns no registro fóssil e foram encontrados em rochas que datam do Permiano Superior [há aproximadamente 254 milhões de anos]”, destaca Danielle.
Essas estimativas foram feitas com base no relógio molecular, técnica que analisa diferenças moleculares no DNA de duas espécies para estimar o tempo de separação entre as linhagens. “Agora, a gente tem uma evidência fóssil muito maior e muito melhor, mas análises futuras podem apontar algum outro cenário”, lembra Iwama.
Cientistas “dão o sangue” pela pesquisa
O estudo reforça a necessidade de uma amostragem densa de pontos de calibração fósseis para inferir os tempos de divergência com precisão e exatidão. Mas como as sanguessugas não são particularmente bem estudadas, novas espécies são descritas quase todos os anos.
“Com a ajuda do Rafael Iwama, participei da descrição de espécies existentes, mas esta foi a primeira vez que qualquer um de nós trabalhou em uma descrição paleontológica. Foi desafiador, porque não conseguimos realizar dissecações de múltiplas espécies como normalmente faríamos, mas também foi emocionante”, comenta Danielle.
Ela e Iwama já serviram de “isca” para sanguessugas inúmeras vezes. “A gente entra no laguinho descalço, normalmente; espera uns 20 minutos e faz uma ‘dancinha’ para chamar atenção, porque elas são atraídas pelo movimento”, relata o pesquisador da USP.Sanguessugas medicinais mediterrâneas (Hirudo verbana) após serem alimentadas. Na foto, é possível identificar as duas ventosas (uma maior, outra menor) – Foto: Danielle de Carle/Cedida pela pesquisadora

Os dois foram chamados pelo professor Nanglu para examinar o fóssil devido à ampla experiência da dupla com sanguessugas. “Há vídeos no YouTube de sanguessugas sugando todo o líquido de um caracol. Eu não sei se você já teve essa experiência de ter uma sanguessuga grudada em você, é muito legal”, diz Iwama. Segundo o pesquisador, as hematófagas se alimentam apenas uma vez por ano, podendo viver de três a quatro anos em qualquer ambiente úmido. “Só não se encontra no gelo.”
Ele lembra, porém, que quando há sanguessugas muito tolerantes a ambientes com pouco oxigênio, a espécie serve como um marcador negativo da qualidade da água. O especialista também desaconselha o uso de sanguessugas para qualquer tratamento fora do ambiente hospitalar. “Isso pode até ser perigoso, porque se você tira essa sanguessuga de uma forma abrupta, ela pode regurgitar e transmitir alguma bactéria.”
De acordo com o pesquisador, sanguessugas são modelos interessantes de análise para estudos da neurociência, já que elas têm um número reduzido de neurônios, mas de grandes dimensões. “Algumas décadas atrás, alguns laboratórios usavam esse modelo por ser fácil observar a informação nervosa passando pela célula”, conta.
Segundo Danielle, outra curiosidade das sanguessugas é que membros do gênero Haemopis, por exemplo, alimentam-se de presas vivas. “Basicamente qualquer animal pequeno o suficiente para caber em suas bocas ou cadáveres em decomposição”, detalha. “E membros do gênero Praobdellidae foram observados alimentando-se de fluidos corporais de caranguejos nas áreas de membrana mole, entre as placas de seus exoesqueletos”, apontando que nem toda sanguessuga suga sangue. Nem mesmo as atuais.
O artigo The first leech body fossil predates estimated hirudinidan origins by 200 million years está disponível on-line e pode ser lido neste link.
Mais informações: danielle.decarle@utoronto.ca, com Danielle de Carle; eiji.iwama@gmail.com, com Rafael Iwama; e karma.nanglu@ucr.edu, com Karma Nanglu