Paleontólogos brasileiros descobrem nova espécie de caranguejo do Cretáceo no continente gelado, em uma rara aparição desse tipo de fóssil no Hemisfério Sul
Batizado pelos pesquisadores como o “primo Gondwana da Antártida”, o novo caranguejo foi encontrado na Ilha James Ross, no extremo nordeste da península antártica, durante a 41ª Operação Antártica Brasileira (Operantar) – expedição científica anual conduzida pela Marinha do Brasil durante o verão antártico para apoiar a manutenção do País enquanto membro consultivo do Tratado da Antártida, em vigor desde 1961. Para os pesquisadores, o novo caranguejo pode ajudar na compreensão de ecossistemas antigos e de trocas biogeográficas da fauna de caranguejos do Hemisfério Norte para o supercontinente do sul, Gondwana.
Em trabalho publicado no Journal of Paleontology, os cientistas descrevem o achado como uma nova espécie de caranguejo braquiúro – o chamado “caranguejo verdadeiro” – de carapaça achatada e abdome localizado abaixo de um amplo cefalotórax (que agrupa cabeça e tórax). Foi justamente o cefalotórax bem preservado que denunciou aos pesquisadores se tratar de uma espécie totalmente distinta de outras já encontradas.
“O que torna esse fóssil tão especial é a preservação excepcional da parte ventral do animal, algo muito raro em caranguejos fósseis. No exemplar, conseguimos observar não só a carapaça dorsal, mas também detalhes do ventre, incluindo o abdome e parte das pernas. Essas estruturas ajudam a entender a anatomia funcional do animal, como o mecanismo de encaixe entre o abdome e as pernas traseiras, que servia para proteger o corpo e manter o pleon (a parte abdominal) preso à parte ventral — um recurso comum em grupos mais antigos de caranguejos”, diz Daniel Lima, pesquisador do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, na Universidade Regional do Cariri (Urca), no Ceará.
Lima é o primeiro autor da publicação. Ao Jornal da USP, ele explica que a escavação na Ilha James Ross foi realizada no âmbito do projeto Paleoantar – Paleobiologia e Paleogeografia do Gondwana Sul: Interrelações entre Antártica e América do Sul.

Daniel Lima, paleontólogo do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, Universidade Regional do Cariri - Foto: arquivo pessoal
O projeto Paleoantar é liderado pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com participação da Urca, do Museu de Zoologia da USP (MZUSP), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com apoio logístico da Marinha do Brasil.
Jornada ao sul da Terra
A Antártida é o local mais distante ao sul do planeta, mais gelado, mais seco e mais ventoso do mundo. Mas a Antártida em que viveu o Sabellidromites santamarta, durante o período Cretáceo, era muito diferente da que conhecemos hoje. “Naquele tempo, o clima era quente e úmido, com florestas densas e mares de águas mornas — um ambiente propício à vida marinha diversificada, incluindo moluscos, peixes, plesiossauros e, como agora sabemos, caranguejos como este”, afirma o paleontólogo.
Vale lembrar que o Cretáceo – compreendido entre 145 milhões e 65 milhões de anos – foi o último período da era Mesozoica, marcado pelo reordenamento dos continentes, surgimento das plantas com flores e frutos (angiospermas) e pleno domínio de répteis como dinossauros e pterossauros.
Toda essa complexidade se preservou, de alguma maneira, na formação geológica de Santa Marta, na Antártida. Segundo os pesquisadores, o sítio onde o caranguejo foi encontrado é conhecido por seus conjuntos fósseis excepcionalmente bem preservados e diversos, raros em altas latitudes meridionais como a região polar antártica. Ainda de acordo com o trabalho, a área é formada por depósitos de partículas vulcânicas sedimentadas, entre elas arenito, siltitos e tufos compostos de cinzas de vulcão que se acumularam na superfície terrestre formando um delta.
Para navegar pelo oceano austral e permanecer em um ambiente tão inóspito foi necessário muito planejamento e disposição. Os cientistas partiram do Rio de Janeiro de avião até Punta Arenas, no Chile. A partir de lá, o grupo foi conduzido pelo Capitão de Mar e Guerra Fabiano de Medeiros Ichayo, comandante do Ary Rongel, navio especial da Marinha do Brasil para ambiente antártico, e posteriormente foram deixados na Ilha James Ross de helicóptero.
“Atravessamos o [estreito de] Drake, até chegar ao nosso destino final, que era a Estação Antártica Comandante Ferraz, onde ficam os cientistas que trabalham em laboratório. No nosso caso, fomos até a Ilha de James Ross, onde ficamos acampados por 32 dias, em oito pesquisadores e mais um montanhista da Marinha”, descreve Renato Ghilardi, paleontólogo da Unesp e um dos autores do estudo. Ele conta que as barracas onde ficaram eram especiais para suportar a média de ventos de 70 km/h durante o dia, que podiam se intensificar à noite, além da neve.

Renato Ghilard é paleontólogo e Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) - Foto: Reprodução / Researchgate

Nesses 32 dias, nós ficamos literalmente isolados do mundo, vagueando pela ilha, procurando por fósseis, até o resgate do [navio] Ary Rongel”
“A logística é sempre um desafio: levam-se dias para chegar ao acampamento na ilha, utilizando navios e helicópteros, e o trabalho geralmente acontece em condições climáticas extremas — mas tudo isso é recompensado quando se encontra um material como esse”, completa Lima.
Navegando o Mar de Tétis

Círculos coloridos indicam ocorrências de algumas famílias basais de braquiúros. Setas brancas indicam paleocorrentes marinhas rasas. A seta amarela indica possível rota de dispersão de Dynomenidae durante o Cretáceo Superior - Imagem: extraída do artigo
Após encontrarem o fóssil, os cientistas logo se dedicaram a detalhar as características morfológicas do espécime. O trabalho é uma delicada equação que considera tanto seus detalhes únicos quanto as implicações daquele fóssil para a reconstrução da história geológica e evolutiva da vida naquele espaço.
Segundo os paleontólogos, o espécime encontrado exibe um conjunto de características que não corresponde a nenhuma das subfamílias atualmente conhecidas. Lima conta que o gênero Sabellidromites era atribuído à família Goniodromitidae, mas com a descoberta desse exemplar completo — especialmente com os detalhes da região ventral —, eles constataram que o novo Sabellidromites santamarta compartilha traços anatômicos exclusivos da família Dynomenidae.
“Isso nos levou a propor a transferência do gênero para essa nova família, com implicações importantes para entender a evolução dos caranguejos no Cretáceo”, afirma Marcos Tavares, professor e curador de crustáceos do MZUSP, explicando que Dynomenidae é um grupo considerado relicto. “Ou seja, um grupo que, no passado, foi muito mais diverso e abundante, mas hoje existem apenas em poucas espécies e áreas restritas, o que torna cada registro fóssil uma peça importante para entender sua história evolutiva”, diz o professor e coautor do artigo.
Outra implicação da descoberta está relacionada à hipótese de trocas faunísticas entre os Hemisférios Norte e Sul durante o Cretáceo Superior, além dos mecanismos de dispersão da vida entre continentes. Uma das hipóteses é que o Sabellidromites santamarta tenha navegado pelo Mar de Tétis, formado a partir da divisão do supercontinente Pangea, em rotas transatlânticas facilitadas por correntes marinhas rasas e atraindo o caranguejo para um ambiente de clima quente do Cretáceo Superior.

Marcos Tavares é professor e curador de crustáceos do Museu de Zoologia da USP - Foto: reprodução MZUSP
Mas, neste caso, o caranguejo abre mais perguntas do que respostas: “Como exatamente eles chegaram? Migraram por correntes marinhas ou por meio do canal conectado ao antigo oceano de Tétis? Chegaram a partir do Canal Transaariano que conectava o Mar de Tétis, ao norte, com o recém-formado Oceano Atlântico Sul, ao sul? Ou, ainda, se desenvolveram localmente a partir de linhagens mais antigas?”, questiona Lima.

São questões que só poderão ser respondidas com mais escavações, novos fósseis e análises comparativas com registros de outras partes do mundo”
Para os próximos anos, o grupo pretende aprofundar os estudos sobre a diversidade de caranguejos fósseis da região e reavaliar outros gêneros já descritos, à luz dessas novas informações anatômicas. “Há muito ainda a ser descoberto sob o gelo da Antártica — e isso torna a pesquisa ainda mais empolgante”, diz.
O artigo The Antarctic’s Gondwanan cousin: a new Dynomenidae (Crustacea, Dromioidea) from the Santa Marta Formation, James Ross Basin, Antarctica está disponível on-line e pode ser lido neste link.
Mais informações: danieljmlima@gmail.com, com Daniel Lima